O cego embriagado

Mário R. Andrade
6 min readFeb 24, 2020
Person with eyes covered

Todas as noites gosto de fazer uma caminhada depois de jantar. Caminha durante uma ou duas horas para organizar ideias.

Numa noite enquanto aguardava junto ao semáforo o sinal ficar verde para atravessar a rua reparo num senhor que subia uma rua perpêndicular fazendo movimentos pouco normais.

A certo momento ele tem dificuldades para continuar a subir a rua, estava nitidamente alcoolizado e a aproximar-se de um um cruzamento onde podiam surgir carros ou até mesmo um autocarro de um ângulo com pouca visibilidade e que não permite ver se está alguém a atravessar a rua, especialmente alguém com uma incapacidade visual e dificuldade em caminhar em linha recta. Aproximei-me do senhor e comecei uma conversa

Boa noite, precisa de ajuda?

Ele prontamente recusou e afirmou não precisava de ajuda mas pela dificuldade que teve em articular a frase “Não quero ajuda”, percebi que ele ia eventualmente precisar de ajuda.

Não querendo impôr a minha vontade sobre a dele decidi que o ia deixar seguir o seu rumo sem intervir. Ofereci ajuda mas ele não a aceitou, não vou insistir, assim pensei.

Quando atravessei a rua para continuar a minha caminhada olhei para trás e reparo que ele avança para o meio da estrada meio na diagonal parecendo que pretendia definir um arco entre um lado da estrada e o outro.

A estrada é larga, tem quatro vias para que os autocarros possam parar sem que o trânsito fique condicionado e aquele senhor avançou para o meio da estrada com viaturas em movimento.

O trânsito a pára, há pessoas na paragem a aguardar o autocarro que se limitam a olhar, os condutores ao perceber que ele é cego e não pressionam, limitam-se a parar, mas ele… ele não tem visão para poder analisar a situação e sair dali.

Para nós, que conseguimos ver, a solução é simples, voltar para trás para o passeio, deixar os carros passar e atravessar a estrada. Ele não tem outra opção a não ser voltar para trás devido á congestão de automóveis que ocorreu quando ele caminhou para o meio da estrada, mas dúvido que ele tivesse noção de que direcção era ‘para trás’ nesta altura.

Volto a aproximar-me dele e digo com um tom amigável

Estás o meio da estrada, anda, vou levar-te até ao passeio.

A resposta dele não foi a que eu esperava. Gritou comigo como se eu fosse um comercial de telemarketing a tentar vender um seguro de saúde que ele já tem e não precisa…

– NÃO PRECISO DE AJUDA, SEI PARA ONDE VOU!

E para onde vais?

– “Vou para casa”, respondeu prontamente como se tivesse certeza do caminho que estava a percorrer

Sorri ligeiramente, afinal de contas meti-me a jeito desta resposta.

A tua casa é longe daqui?

Ele indicou-me a zona onde vivia e eu sabia que ele estava completamente fora de rumo e afastava-se cada vez mais da zona para onde queria ir.

Aparentemente chateado com o facto de eu andar a fazer perguntas, ele começa a esbracejar e a levantar a bengala no ar enquanto avança ainda mais para o meio da estrada. As viaturas continuam paradas sem conseguir avançar ou recuar devido à quantidade de trânsito acumulado na rua…

Estás no meio da estrada e rodeado de carros. Se não te afastas os carros não conseguem andar e tu não consegues atravessar.

Não quero saber. Deixa-me!

Mesmo quando lhe digo que a situação dele é complicada ele não queria ajuda. No estado em que se encontrava não conseguiu nem ia conseguir sair dali sem que alguém o ajudasse.

Ao insistir em ajuda-lo ele sentiu-se ameaçado, afinal de contas tinha sido abordado por um estranho, de noite, no meio da rua, ainda por cima que tentava encaminha-lo para um caminho que ele não queria ir.

Deixa-me. Eu sei para onde vou. Eu sou o ……., sei para onde vou!

Este senhor com alguma idade, cego e bêbado estava completamente desorientado no meio da estrada com várias viaturas a impedir a sua passagem em praticamente todas as direcções e não conseguia ver a situação em que se encontrava, recusava ajuda e avançava em qualquer direcção para onde esatava virado mas sempre afastando-se cada vez mais do seu objetivo que era ir para casa.

Nesta altura tomei a decisão que o ia encaminhar para o passeio do outro lado da rua que ele queria atravessar. A situação dele não se resolve facilmente sozinha simplesmente deixando as coisas seguir o seu rumo. Quer ele quisesse, quer não eu ia tira-lo daquela situação e encaminha-lo para o passeio.

Segurei a mão dele perto de onde ele segura a bengala para evitar que me tentasse agredir e e puxei ligeiramente a mão dele na direcção que queria que ele seguisse. Obviamente sentiu-se ameaçado, mas avançou quase até ao passeio, faltava apenas 1 passo… mas com receio de onde eu o estava a levar, recusou a avançar mais e deu um passo atrás.

O senhor se estava a debater tanto para não vir comigo que alguém decidiu sair da viatura e tentar ajudar. Essa pessoa vinha com postura diferente da atmosfera que se criou entre eu e a pessoa que esatava a tentar ajudar mas a conversa entre o condutor e cego não parecia estar a ter nenhum efeito prático. Depois de o condutor ouvir insultos gratuitos e ameaças à sua integridade fisica, a conversa terminou tão rapidamente como começou. O condutor tinha sido mais acertivo mas não deu ordens a não ser para ele se acalmar e sair da estrada. Voltou a entrar na viatura e seguiu o seu caminho.

Enquanto ambos falavam afastei-me e fiquei a observar à distância.

O cego acabou por ir em frente para onde eu o tentei encaminhar. Mas não resolvia a sua situação completamente, aquele pedaço de passeio era uma ilha no meio da estrada, um pedaço de passeio em formato triangular no meio da estrada que faz a separação de direcções para os automóveis.

Mantive-me a observar à distância para perceber se ele conseguia seguir o caminho mas bastaram dois passos para perceber que ele estava completamente desorientado e novamente a ir na direcção errada.

Para mim o caminho a seguir era obvio, eu podia ver a situação toda e era fácil tomar uma decisão.

Ele ia, eventualmente, sair em qualquer direcção e decidir o resto conforme a situações fossem acontecendo, mas corria o risco de voltar para o meio da estrada, do cruzamento e dava à falta de visibilidade de um dos lados da estrada por causa da subida acentuada, podia mesmo ser atropelado. Precisava de alguém que o guiasse novamente.

Enquanto observava a conversa entre o cego e o condutor reparei que o cego gritou várias vezes o seu nome sem que alguém o tivesse perguntado. No livro Como farzer amigos e influênciar pessoas, Dale Carnegie fala sobre como o nosso nome é algo que damos muito valor, quase tão importante como o nosso trabalho e a nossa familia, parte da nossa identidade e para alguns é mesmo o mais importante.

Aproveitei o facto de agora saber o nome do senhor para o abordar de maneira diferente. Ele gritava coisas sem sentido que eu não conseguia perceber, mas quando ouviu o seu nome rapidamente virou a cara na direcção do som.

O resultado foi que, embora queixando-se de tudo e continuando a gritar o seu nome bem alto, acabou por seguir a minha voz até ao passeio. Chegou a ‘bom porto’. Estava seguro e fora daquela situação toda que ele não deve ter noção da sua dimenção.

Quando percebi que ele ia seguir numa direcção para longe da estrada desejei-lhe boa noite e boa sorte na sua viagem. Estava na altura de eu seguir com a minha caminhada.

Uma lição para a vida

Curiosamente no dia seguinte encontrei um post do Manuel Gavina que falava sobre algo que podia ter alterado por completo o desenrolar da história que acabei de contar.

No desenrolar dos comentários o Manuel acabou por fazer uma analogia sobre a vida, com a qual me idêntifiquei, particularmente quando faço uma retrospectiva de 2019.

…muitos andam ’embriagados’ com certas situações. E concordo contigo que devemos encaminhar as pessoas para que saiam de situações menos boas e possam seguir um rumo melhor. 👌.

Se observarmos com atenção à nossa volta encontramos pessoas que andam, como o Manuel refere, ’embriagadas’ com certas situações e ‘às cegas’ na vida.

Situações que não são benéficas e que por vezes podem levar a seguir um rumo que não leva para onde queremos seguir mas a ’embriaguês’ faz-nos pensar de que está tudo bem quando na verdade nem temos noção que estavamos a seguir um caminho que não nos vai beneficiar.

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Mário R. Andrade

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