O cego embriagado
Todas as noites gosto de fazer uma caminhada depois de jantar. Caminha durante uma ou duas horas para organizar ideias.
Numa noite enquanto aguardava junto ao semáforo o sinal ficar verde para atravessar a rua reparo num senhor que subia uma rua perpêndicular fazendo movimentos pouco normais.
A certo momento ele tem dificuldades para continuar a subir a rua, estava nitidamente alcoolizado e a aproximar-se de um um cruzamento onde podiam surgir carros ou até mesmo um autocarro de um ângulo com pouca visibilidade e que não permite ver se está alguém a atravessar a rua, especialmente alguém com uma incapacidade visual e dificuldade em caminhar em linha recta. Aproximei-me do senhor e comecei uma conversa
– Boa noite, precisa de ajuda?
Ele prontamente recusou e afirmou não precisava de ajuda mas pela dificuldade que teve em articular a frase “Não quero ajuda”, percebi que ele ia eventualmente precisar de ajuda.
Não querendo impôr a minha vontade sobre a dele decidi que o ia deixar seguir o seu rumo sem intervir. Ofereci ajuda mas ele não a aceitou, não vou insistir, assim pensei.
Quando atravessei a rua para continuar a minha caminhada olhei para trás e reparo que ele avança para o meio da estrada meio na diagonal parecendo que pretendia definir um arco entre um lado da estrada e o outro.
A estrada é larga, tem quatro vias para que os autocarros possam parar sem que o trânsito fique condicionado e aquele senhor avançou para o meio da estrada com viaturas em movimento.
O trânsito a pára, há pessoas na paragem a aguardar o autocarro que se limitam a olhar, os condutores ao perceber que ele é cego e não pressionam, limitam-se a parar, mas ele… ele não tem visão para poder analisar a situação e sair dali.
Para nós, que conseguimos ver, a solução é simples, voltar para trás para o passeio, deixar os carros passar e atravessar a estrada. Ele não tem outra opção a não ser voltar para trás devido á congestão de automóveis que ocorreu quando ele caminhou para o meio da estrada, mas dúvido que ele tivesse noção de que direcção era ‘para trás’ nesta altura.
Volto a aproximar-me dele e digo com um tom amigável
– Estás o meio da estrada, anda, vou levar-te até ao passeio.
A resposta dele não foi a que eu esperava. Gritou comigo como se eu fosse um comercial de telemarketing a tentar vender um seguro de saúde que ele já tem e não precisa…
– NÃO PRECISO DE AJUDA, SEI PARA ONDE VOU!
– E para onde vais?
– “Vou para casa”, respondeu prontamente como se tivesse certeza do caminho que estava a percorrer
Sorri ligeiramente, afinal de contas meti-me a jeito desta resposta.
– A tua casa é longe daqui?
Ele indicou-me a zona onde vivia e eu sabia que ele estava completamente fora de rumo e afastava-se cada vez mais da zona para onde queria ir.
Aparentemente chateado com o facto de eu andar a fazer perguntas, ele começa a esbracejar e a levantar a bengala no ar enquanto avança ainda mais para o meio da estrada. As viaturas continuam paradas sem conseguir avançar ou recuar devido à quantidade de trânsito acumulado na rua…
– Estás no meio da estrada e rodeado de carros. Se não te afastas os carros não conseguem andar e tu não consegues atravessar.
– Não quero saber. Deixa-me!
Mesmo quando lhe digo que a situação dele é complicada ele não queria ajuda. No estado em que se encontrava não conseguiu nem ia conseguir sair dali sem que alguém o ajudasse.
Ao insistir em ajuda-lo ele sentiu-se ameaçado, afinal de contas tinha sido abordado por um estranho, de noite, no meio da rua, ainda por cima que tentava encaminha-lo para um caminho que ele não queria ir.
– Deixa-me. Eu sei para onde vou. Eu sou o ……., sei para onde vou!
Este senhor com alguma idade, cego e bêbado estava completamente desorientado no meio da estrada com várias viaturas a impedir a sua passagem em praticamente todas as direcções e não conseguia ver a situação em que se encontrava, recusava ajuda e avançava em qualquer direcção para onde esatava virado mas sempre afastando-se cada vez mais do seu objetivo que era ir para casa.
Nesta altura tomei a decisão que o ia encaminhar para o passeio do outro lado da rua que ele queria atravessar. A situação dele não se resolve facilmente sozinha simplesmente deixando as coisas seguir o seu rumo. Quer ele quisesse, quer não eu ia tira-lo daquela situação e encaminha-lo para o passeio.
Segurei a mão dele perto de onde ele segura a bengala para evitar que me tentasse agredir e e puxei ligeiramente a mão dele na direcção que queria que ele seguisse. Obviamente sentiu-se ameaçado, mas avançou quase até ao passeio, faltava apenas 1 passo… mas com receio de onde eu o estava a levar, recusou a avançar mais e deu um passo atrás.
O senhor se estava a debater tanto para não vir comigo que alguém decidiu sair da viatura e tentar ajudar. Essa pessoa vinha com postura diferente da atmosfera que se criou entre eu e a pessoa que esatava a tentar ajudar mas a conversa entre o condutor e cego não parecia estar a ter nenhum efeito prático. Depois de o condutor ouvir insultos gratuitos e ameaças à sua integridade fisica, a conversa terminou tão rapidamente como começou. O condutor tinha sido mais acertivo mas não deu ordens a não ser para ele se acalmar e sair da estrada. Voltou a entrar na viatura e seguiu o seu caminho.
Enquanto ambos falavam afastei-me e fiquei a observar à distância.
O cego acabou por ir em frente para onde eu o tentei encaminhar. Mas não resolvia a sua situação completamente, aquele pedaço de passeio era uma ilha no meio da estrada, um pedaço de passeio em formato triangular no meio da estrada que faz a separação de direcções para os automóveis.
Mantive-me a observar à distância para perceber se ele conseguia seguir o caminho mas bastaram dois passos para perceber que ele estava completamente desorientado e novamente a ir na direcção errada.
Para mim o caminho a seguir era obvio, eu podia ver a situação toda e era fácil tomar uma decisão.
Ele ia, eventualmente, sair em qualquer direcção e decidir o resto conforme a situações fossem acontecendo, mas corria o risco de voltar para o meio da estrada, do cruzamento e dava à falta de visibilidade de um dos lados da estrada por causa da subida acentuada, podia mesmo ser atropelado. Precisava de alguém que o guiasse novamente.
Enquanto observava a conversa entre o cego e o condutor reparei que o cego gritou várias vezes o seu nome sem que alguém o tivesse perguntado. No livro Como farzer amigos e influênciar pessoas, Dale Carnegie fala sobre como o nosso nome é algo que damos muito valor, quase tão importante como o nosso trabalho e a nossa familia, parte da nossa identidade e para alguns é mesmo o mais importante.
Aproveitei o facto de agora saber o nome do senhor para o abordar de maneira diferente. Ele gritava coisas sem sentido que eu não conseguia perceber, mas quando ouviu o seu nome rapidamente virou a cara na direcção do som.
O resultado foi que, embora queixando-se de tudo e continuando a gritar o seu nome bem alto, acabou por seguir a minha voz até ao passeio. Chegou a ‘bom porto’. Estava seguro e fora daquela situação toda que ele não deve ter noção da sua dimenção.
Quando percebi que ele ia seguir numa direcção para longe da estrada desejei-lhe boa noite e boa sorte na sua viagem. Estava na altura de eu seguir com a minha caminhada.
Uma lição para a vida
Curiosamente no dia seguinte encontrei um post do Manuel Gavina que falava sobre algo que podia ter alterado por completo o desenrolar da história que acabei de contar.
No desenrolar dos comentários o Manuel acabou por fazer uma analogia sobre a vida, com a qual me idêntifiquei, particularmente quando faço uma retrospectiva de 2019.
…muitos andam ’embriagados’ com certas situações. E concordo contigo que devemos encaminhar as pessoas para que saiam de situações menos boas e possam seguir um rumo melhor. 👌.
Se observarmos com atenção à nossa volta encontramos pessoas que andam, como o Manuel refere, ’embriagadas’ com certas situações e ‘às cegas’ na vida.
Situações que não são benéficas e que por vezes podem levar a seguir um rumo que não leva para onde queremos seguir mas a ’embriaguês’ faz-nos pensar de que está tudo bem quando na verdade nem temos noção que estavamos a seguir um caminho que não nos vai beneficiar.